MONTANHA - travessia da Serra Fina (2008)

Aproveitei os 4 dias de feriadão Corpus Christi para fazer a travessia da Serra Fina e levar a BASE1 ao 4º. ponto mais alto do Brasil. Essa foi minha segunda travessia e pra todo mundo que eu contava logo vinha a pergunta: Serra Fina? Aonde fica? O que é isso?

Serra Fina fica entre RIO e SAMPA.É um trecho da APA da Serra da Mantiqueira e faz a divisa geográfica entre RJ/MG/SP. Tem esse nome porque em vários trechos a crista é estreita. Andei no trecho entre Passa Quatro e Itamonte próximo a Cruzeiro e Itanhandu... Em seu trajeto passamos pela PEDRA DA MINA e o PICO 3 ESTADOS. Da trilha é possível visualizar o Pico das Agulhas Negras, Morro do Couto, Prateleiras, Marins, Itaguaré, Pedra do Picu... 

Então é isso, Serra Fina é região de serra com altos e baixos, e se o relevo é assim, posso garantir que o emocional, o dia-a-dia da montanha também vive seqüências de inferno e paraíso então é por essa linha que vou relatar os piores e melhores momentos da travessia:

- A aventura começa com umas 10h dentro da VAN... la dentro 15 pessoas espremidas tentam assistir o HOMEM ARANHA 3. 

- A imagem está em preto e branco e com chuviscos... o dia amanhece e  vc descobre que perdeu o final do filme e está com uma puta dor no pescoço...

- Horas depois vc já atravessou um riacho, pegou água fresquinha, subiu bastante e contempla o horizonte. Enxerga as cidades de Cruzeiro, Passa Quatro e várias montanhas ao seu redor. Nesse momento vc enche a boca de chocolate e acha que está olhando o paraíso.

- Mais tarde a bota escorrega e vc arrebenta o joelho numa pedra, enrosca a mochila no bambuzal e mete a mão numa planta espinhenta e vai de volta ao inferno. Pelo menos é isso que dizem os palavrões que pensa, fala e ouve...

- Vc senta pra almoçar e ouve uma história legal de montanha enquanto compartilha risos e batatinha frita. Descobre que as pessoas não se importam se vc come feito um ogro, só usa colher e não tem guardanapos. Não é a Santa Ceia, mas vc sente-se um mensageiro cheio de esperanças para dividir.
- Vc andou o dia inteiro. Andou muito e está cansado. Chegou a hora de montar acampamento e descansar, mas então vc descobre que uma empresa mandou carregadores - isso mesmo, carregadores tipo “sherpas”, levando barracas para  turistas e ocuparam as principais lugares de acampamento. Pra vc só resta caminhar mais 1h e lá na frente sobrou um lugar bem punk cheio de pedras e espinhos... então vc tem uma “visão” e nela surge o demônio que sorri e diz  “Pai! perdoa-os! Eles não sabem o que fazem”... seguido de uma risada maligna... vc não acha graça e continua andando.
- O visual é indescritível. Com aquela massa de ar frio e seco o céu ficou limpo e azul. O ar estava gelado e agradável para caminhar e respirar. Perfeito para um discípulo do frio. O paraíso é gelado. 
- Áreas de acampamento lotadas eu já contei. Acampar em locais ruins já contei também, mas ainda não contei que no cume do PICO 3 ESTADOS tinha fila pra tirar foto. CARA-ISSO-É-O-INFERNO-PEGAR-FILA-NO-CUME-DA-MONTANHA! Um lugar sublime cheio de pessoas e daí vc entende porque o Sartre dizia...O INFERNO SÃO OS OUTROS. Em uma imagem acima estou na divisa entre RJ – MG – SP. Esperei na fila pra tirar foto com esse “monumento” que já virou ferro-velho faz tempo.... 

- Céu estrelado, lua cheia e hipnotizante. Vc vê nada mais, nada menos, do que 7 estrelas cadentes. Encontra as “3 Marias” na constelação de ORION e procura uma das estrelas mais brilhantes do céu, Betelgeuse. Nessa hora não há mais problema algum e então vc esquece tudo e faz um olho-no-olho com o Criador.

- Tem pouca água nessa trilha. Se vc não se cuidar pode passar sede, então tem que andar carregado de água feito camelo. Falando em bichos, tem pouca fauna nessa trilha. Em 4 dias praticamente só vi um pássaro! Mas pra compensar, não tem lixo na trilha, que é cheia de galhos, bambus, cipós... tem de tudo pra enroscar na sua cara, na sua mochila... e o mais irritante de todos é o capim que esconde a trilha e corta bastante.

- A paisagem é grandiosa, monumental, intensa, arrebatadora, capaz de te fazer esquecer a dor no corpo e talvez até daquelas dores que vão se acumulando no pensamento. A montanha troca de energia com vc e te deixa totalmente positivo. Vc lembra de Nietzsche:  “ quando vc olha para o abismo, o abismo também olha para vc” e continua caminhando, a cada passo transformando a montanha e sendo transformado por ela.

- Na primeira noite vc passa frio e aprende que se dormir com + uma meia + uma camiseta + anorak a situação não fica tão congelante.... a turma que levou termômetro falou até em -2 ou -7 ou -10 graus (no vale úmido da Pedra da Mina).... caracas quem dá menos? Vc esquece o pão fora da barraca e na hora do café está congelado e mais duro que pedra de gelo. Quem amassou esse pão? Quem se dizia discípulo do frio?

- Lá no meio do nada vc conhece pessoas de todos os tipos e é forçado a um exercício inesperado de socialização. Ao final de uma longa subida vc encontra uma turminha. Oferecem uma pedra para sentar, histórias para ouvir, mas na verdade tudo que vc queria era silêncio e um gole d’água. Então vc se pergunta: é possível compartilhar o isolamento? Existe isolamento coletivo?
- Três dias de caminhada e vc chega ao cume da PEDRA DA MINA. São 2.798m de altitude, o céu está limpo, a brisa agradável e vc emociona-se com o lugar. Sente-se parte da paisagem, parte do paraíso, em comunhão com as palavras NATUREZA e DEUS.

- Vc compra um chapéu de lona pra ficar parecido com o Indiana Jones e daí algum engraçadinho te chama de cowboy do filme Brockeback Mountain.


Fernando – Brotto – IVITURUI MONTANHISMO - Vicente – Zé Luis – Marcel – Rafael – CPM – Aliny – Arce – O2 Expedições – Greice – Celso – GRUPO COSMO – Otaviano – Caroline – Ribamau – Marcelo – Jops – BASE1 – pessoas – entidades – todos debaixo do mesmo céu e seguindo pela mesma trilha, caminhando com Deus e o Diabo na Serra Fina.

- Você olha para pessoas de aparência muito frágil e percebe que a maior força que nos leva pela montanha não vem do físico e sim da determinação mental e da capacidade de superação. Descobre pessoas viciadas em montanha, capazes de virar a noite caminhando, chegar 3h na frente na área de acampamento; outras que passam um dia inteiro caminhando e ao final do dia só precisam comer uma banana amassada. Então vc pensa... “esse é Tropa de Elite”

- Vc continua pensando nessa Tropa de Elite da montanha e não consegue se enquadrar. Então percebe que com o seu jeito displicente, inconseqüente, introspectivo, incomodando os demais com perguntas, com paradas, com blá-blá-blá, sem dúvida irritou bastante e também foi irritado...então vc percebe que está em outro grupo... vc é da TROPA SE IRRITE.

Cada caminhada é diferente e traz consigo novos problemas e soluções:


Coisas que aprendi na Serra Fina:
Dá pra colocar a mochila vazia embaixo da barraca pra corrigir super-buracos e proteger das pontas de pedra...
Dá pra colocar o isolante por baixo da barraca para proteger o piso da barraca...
Dá pra levar empadão e feijoada pra montanha...
Café orgânico é gostoso e prático...
E possível arrancar aquela plantinha espinhenta do chão com uma boa bicuda.


Coisas que perdi na Serra Fina:
Minha bota abriu a sola em três lugares e ainda perdeu um pedaço da estrutura.
O isolante virou peneira e vai ser recuperado na base da fita “silver tape”
O bastão de caminhada foi salvador e evitou uma queda feia, porém rompeu a borracha do cabo. Fim de carreira.
Minha capa de mochila não resistiu aos enroscos do caminho e vai ser aposentada. 



Coisas que encontrei na Serra Fina:
Conheci pessoas inspiradoras. Pessoas que caminharam comigo por horas e horas e horas sem trocar uma palavra apenas compartilhando do silêncio e da vastidão daquela paisagem. Encontrei paisagens únicas para eternizar na memória. Encontrei ordem e encontrei o caos. Encontrei dor e sofrimento. Encontrei paz e alegria.


CONCLUSÃO: A travessia da Serra Fina é uma aventura fantástica e ao mesmo tempo exaustiva que exige preparo físico e emocional. Eu recomendo fazer durante as férias, fora de feriados, e tentar pegar a montanha “vazia e abandonada”. Outra dica: se puder fazer a travessia em 5 dias vai sobrar tempo para sentar e curtir os lugares incríveis que vai encontrar pelo caminho. Está pensando em ir para a Serra Fina? Lembrei das palavras do Adauto da MANASLU: Quando eu disse que estava “pensando em ir para a Patagônia” ele respondeu: “pare de pensar e vá. Deixe pra pensar depois”. Um dos melhores conselhos que já ouvi. Depois disso fui para o Fitz Roy, Villarica, Agulhas Negras e tantos lugares inesquecíveis. O Adauto morreu, mas tento não esquecer essas palavras. Então se vc está pensando em ir para a Serra Fina pare de pensar e vá... pode ser que vc encontre o paraíso. Pode ser que vc encontre o inferno. Eu encontrei os dois. Um dia posso retornar para a Serra Fina e refazer o mesmo caminho, mas com certeza não será a mesma travessia. Então é isso amigos da montanha... uma travessia é um acontecimento que a gente faz uma vez só, então obrigado a todos por compartilharem comigo esses 4 dias de suas vidas...


Quarta-feira 21/05/2008
Saída 21:15h rodoferroviária
Saída 22:45h colégio militar

Quinta-feira 22/05/2008
Chegada 08:00h na fazenda Toca do Lobo
Inicio da travessia 09:30h
Chegada 18:00 no avançado entre Capim Amarelo e Maracanã
Dia de caminhada lenta, sem forçar, com várias paradas para fotos e almoço

Sexta-feira 23/05/2008
Saída 09:00h
Chegada 17:00h na Pedra da Mina (ponto a 15’ abaixo do cume)
Dia de caminhada lenta, (exceto após a água e subida da encosta pedra da mina)

Sábado 24/05/2008
Saída 09:00h
Chegada 18h após Pico 3 Estados
Dia de caminhada mais puxada (principalmente após o bambuzal e subida do 3 estados)

Domingo 25/05/2008
Saída 08:00h
Chegada 14h na água e 15h na van
Caminhada mais puxada, poucas paradas para fotos e sem almoço.
Em casa as 03:30h da segundona.

Comentários

Chico Trekking disse…
Show de relato Jonatan!

É um poema de montanha! Sensacional!
Parabéns pelo talento, cuide bem e continue... sempre ok?

Abração

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